quarta-feira, 26 de outubro de 2011

RAS BERNARDO + QG IMPERIAL!


Se alguém for contar a história do reggae no Brasil terá que, obrigatoriamente, mencionar o nome de Ras Bernardo. Não dá para falar de um sem citar o outro, são histórias que correm juntas ao longo do tempo.
Tempo que vem de longe, há quase vinte anos, quando Ras Bernardo montou uma banda para participar de um pequeno festival em Belford Roxo, Baixada Fluminense do Rio de Janeiro. Mais por intuição do que por planejamento, essa mesma banda anteciparia uma onda que somente anos mais tarde iria estourar na cena musical brasileira. Honrando toda a herança cultural que o destino lhe deu, o Cidade Negra espalhou o reggae por todo o país.
Corria o ano de 1987. Rio de Janeiro, bairro do Catete. Num prédio antigo e caindo aos pedaços ocupado pela lendária UNE (União Nacional dos Estudantes), começava a funcionar o NEC: Núcleo Experimental de Cultura.
Esta sigla meio misteriosa, com um certo clima de ação clandestina típica anos 60, abrigava diversas manifestações culturais de resistência, entre elas o movimento reggae, como legítimo representante da cultura negra.
Dentro desse contexto, começaram a rolar alguns shows de produção precária para uma platéia bem pequena (máximo 50 pessoas) com os nomes que iam aparecendo por lá: Dom Luiz Rasta, KMD-5 (futuro Negril), Ubandu du Reggae e Lumiar.
Apesar das condições bastante adversas, essas apresentações tinham um clima contagiante que proporcionavam momentos únicos e intensos, inesquecíveis para quem teve a sorte de presenciá-los.
Aos poucos a banda Lumiar foi se destacando pela sua força no palco (até então, ninguém possuía material gravado). Era um grupo que vinha da cidade satélite de Belford Roxo, há mais de 50 km dali, para mostrar seu repertório cru e suingado. À frente da banda, magnetizando a todos de microfone em punho, Ras Bernardo começava a dar os primeiros passos na sua longa trajetória musical.
Logo depois, animados pela recepção calorosa do pequeno público que resistia a tudo e teimava em prestigiar aquela ainda incipiente cena reggae, o agora rebatizado Movimento Reggae-NEC decidiu se espalhar por toda a cidade.
Em 1988 não havia lugar melhor para catapultar novas idéias musicais do que o Circo Voador da Lapa. Um lugar democrático e revolucionário desde sua criação, a mítica lona do Circo acabou por se tornar o abrigo perfeito para as novas bandas de reggae que chegavam lá cheias de energia e fogo, prontas para provocar um incêndio de grandes proporções na Babilônia...
Durante um ano e meio a banda Lumiar evoluiu nos palcos e nos estúdios de ensaio. Pela primeira vez os seus componentes estavam tendo a oportunidade de burilar seu trabalho em condições minimamente aceitáveis. Eles também iam se informando cada vez mais a respeito da história do reggae: das clássicas produções dos grandes mestres às novidades que estavam então aparecendo na Jamaica e em Londres. Para Ras Bernardo todo esse fértil período de mergulho no universo do reggae de forma alguma comprometeu a sua intuição musical, a sua centelha criativa que já o havia empurrado para fora da Baixada Fluminense. Apenas trouxe mais convicção de que este era o caminho certo para expressar seus sentimentos em relação às coisas que cercavam todos aqueles que, como ele, viviam a experiência de constante luta pela sobrevivência.
Na virada de 1989 para 1990 o Cidade Negra finalmente grava o seu tão aguardado disco de estréia. Alguns meses antes a banda havia descoberto que existia um outro grupo na cidade que se chamava "Banda Lumiar". Quis o Destino que este contratempo acabasse forçando a mudança do nome da banda para o emblemático nome com o qual entrariam para a história da música popular brasileira. Cidade Negra não era apenas um nome, mas sim uma carta de intenções, um retrato fiel do Brasil como ele é, sem retoques ou maquiagem.
Com Ras Bernardo sempre à frente, o grupo lançou o seu primeiro trabalho pela CBS (hoje Sony), não por acaso intitulado "Lute Para Viver". Nesta música que abre o disco, a letra escrita por ele não deixa dúvidas quanto à mensagem principal da banda: "Tudo é longe/Mas tudo está perto de você/Basta você pensar e erguer os braços/E lutar para vencer".
Além da faixa título algumas outras se destacaram como "Assassinatureza" e "Não Capazes", mas nenhuma delas chegaria próximo ao sucesso alcançado por "Mensagem" e, principalmente, "Falar A Verdade". Essas duas músicas são de presença obrigatória tanto nos shows de Ras Bernardo quanto nos do Cidade Negra até hoje!
"Mensagem" teve a participação especial de um dos maiores mitos da música jamaicana nos vocais: Jimmy Cliff. Na oportunidade, ele aproveitou sua estada no Rio de Janeiro para ir até Belford Roxo e conhecer de perto o berço da banda. Nesta música Ras Bernardo foi especialmente feliz ao redigir os versos "Em meio ao maior sofrimento/Você encontra a chave da felicidade/Às vezes numa derrota você encontra/A chave da próxima vitória/ Deus é a vontade de estar feliz/Deus é a vontade de estar feliz.
Mais uma vez o tema de luta por uma ideal, de superação das dificuldades da vida aparece em suas músicas. Coincidência? Retórica artística? Não exatamente...
"Falar A Verdade" é um capítulo à parte nas vidas de todos os integrantes do Cidade Negra. Desde o momento que ela foi composta, passando pelos ensaios e, mais tarde, durante a gravação do disco, todos sentiam que algo de muito especial estava nascendo. A partir do momento que ela foi escolhida como música de trabalho do disco e foi para as rádios, tudo mudou em suas vidas.
Pela primeira vez um conjunto de reggae aparecia nas TV's de norte a sul do país e a figura de Ras Bernardo, com os seus dreadlocks em cadeia nacional foi um verdadeiro grito de liberdade para o movimento reggae do país. Hoje não parece muita coisa mas, há 14 anos atrás, contava-se nos dedos de uma das mãos os dreads circulando pela mídia.
Além disso, outras barreiras foram quebradas com esse hit: não seria mais necessário, dali por diante, insistir em reggaes cantados em inglês e/ou imitando Bob Marley & The Wailers. Com "Falar A Verdade" dá-se o nascimento do reggae verde-e-amarelo de amplo alcance, com letra simples e direta ("Estamos aí pro que der e vier/A fim de falar a verdadeira verdade"), a bordo de uma levada vibrante temperada por uma cuíca suingada e por metais em brasa. Do dia pra noite, Cidade Negra e Ras Bernardo passaram a ser reconhecidos em praticamente todo o Brasil, tornando-se uma referência para jovens negros que, como eles, lutavam com dignidade por um lugar ao sol. O primeiro passo havia sido dado.
Negro No Poder - Um disco além do seu tempo...
Animados pela ótima repercussão do disco de estréia, a banda decidiu ir além no seu segundo trabalho. Mais do que repetir a fórmula que havia dado certo antes, o Cidade buscou evoluir a sua própria linguagem gravando um álbum que trouxesse contemporaneidade, inovação e, por isso mesmo, algum risco. Desde o nome escolhido para o disco até os temas abordados (esquadrão da morte, desigualdade social e racial, o poder do dinheiro), passando pela sonoridade mais agressiva que incluía guitarras distorcidas, samples e bateria eletrônica, esse disco acabou sofrendo rejeição por boa parte da mídia que esperava apenas mais um "Falar A Verdade". "Fico vendo essas coisas/Vendo tudo acontecer/Injustiças e maldades/E o abuso do poder", assim Ras Bernardo abria o disco numa de suas letras mais contundentes, "Negro No Poder", a faixa-título. E concluía "Quando olham a minha gente/Nunca é pra proteger/Muitas coisas acontecem/E o meu povo resistindo/Oh Jah, negro no poder/Pra já, negro no poder". Talvez um pouco forte demais para tocar na Turma da Xuxa...
Mas o repertório do disco não era feito somente de contestação e denúncia como uma análise superficial poderia levar a crer. Em outras composições, Ras Bernardo renovava sua confiança na raça humana e nas ações positivas que qualquer um poderia fazer: "Acredito eu que as coisas estão em transformação/Acredito que, dentro do ser, há solução" ("Incandescente Ser"); "Tenho meus motivos, tenho o que é preciso/Fico positivo contra o negativo/Tomo sua força prá te derrotar" ("Há Motivos").
Também não se pode deixar de mencionar mais uma novidade introduzida por Ras Bernardo no universo da banda: o reggae romântico. Hoje em dia pode parecer curioso mas, à época, houve uma certa resistência interna pela inclusão da belíssima "Conciliação" onde havia uma declaração de amor digna de qualquer reggaeman: "Estou aqui pra te falar/Que só o amor que dentro há/Pode nos salvar.../Pode nos salvar...".
Esta música também sobrevive até hoje no repertório do Cidade Negra, tendo sido inclusive objeto de uma versão dub feita pelo mitológico músico e produtor Augustos Pablo para o disco "Dubs".
"Negro No Poder" foi um disco além do seu tempo e, talvez por isso, mal recebido pela crítica e por muitos ouvintes. Uma nova audição hoje nesse trabalho permite avaliar o quanto existe de atual na sonoridade, nos arranjos e nas letras, qualidades que não foram apreciadas à época.
Mas engana-se quem vê esse período apenas como uma coleção de insucessos para o grupo. Foi com Ras Bernardo à frente que eles iniciaram sua bem-sucedida carreira internacional.
Em 1992 o Cidade abriu o show do Steel Pulse na França, com excelente repercussão junto à platéia 100% gringa. Meses depois, tornaram-se a primeira banda brasileira a pisar no palco sagrado do Sunsplash, o mais importante festival da Jamaica.

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